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A POESIA E SEUS INTERSIGNOS NA POÉTICA DE ANTONIO MIRANDA

 

DIAS JUNIOR, Valter Gomes (UFPB)

 

 

RESUMO: Desde meados do século XX até os dias hodiernos, as produções artísticas têm sido construídas e (re)construídas através de estruturas que nos condicionam a enxergarmos a arte deste período como renovação. Os textos literários absorvem esse comportamento almejando o que melhor se adéqua à comunicação artística e visando, com essa postura, a um novo fazer literário contemporâneo. Um dos nomes merecedor de evidência é Antonio Miranda (1940 - ) por ser um poeta aberto à edificação de uma poesia sem limites. Dentre as composições que ele domina, deter-nos-emos a duas bastante recorrentes: o esperpentismo poético e a antipoesia. Esses estilos unem-se por contradizerem e contestarem. Pelo grau de dinamicidade sígnica em sua produção, pelo fato de a poesia como um todo ser erigida intersignicamente, sua poesia, entre tantos títulos o livro PER VER SOS (2003), encaminha-nos a leituras direcionadas pelos vieses da semiótica peirceana, que são conceitos que contribuem bastante para uma compreensão do fazer poético contemporâneo.

 

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Miranda, esperpentismo, antipoesia, semiótica peirceana.

 

 

            A contemporaneidade tem-nos dado registros de que a arte é um processo de inovação. Para depreendermos esses meandros, é necessário captarmo-la como uma estrutura que desconhece a imposição de limites no fazer artístico. A poesia de nossa atualidade propõe novidade, mas para isso seu criador não pode sentir-se preso a padrões herméticos, isto é, indissolúveis. Por isso, que o poeta “é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras” e isso ocorre a partir do momento que ele se põe a construir a linguagem poética, já que “a palavra “poeta” vem do grego “poietes = aquele que faz”. Faz o quê? Faz linguagem”. Dessa forma age Antonio Miranda em seu fazer poético: fazendo e (re)fazendo linguagem. Para ele, “trabalhar com palavras de sentidos que são públicos, formas que remontam a significados atribuídos, numa heurística ou ontologia de textos e pretextos, é um desafio que não parte da ignorância, mas da substância em que se fundamenta o artista”.

Partindo desse argumento, poderíamos indagar se a habilidade de trabalhar com a linguagem é um mecanismo exclusivo do poeta. Assertivamente não, todavia existem diferenças práticas entre a maneira com que o artista da palavra lida com o código verbal e a forma que falantes do código linguístico utilizam-na, destituindo-a de funcionalidade artística:

 

O signo verbal forma um sistema dominante de comunicação. Quer dizer: todo mundo transa, todo mundo usa, todo mundo trabalha com o signo verbal (falado, principalmente, pois só uns 10% das línguas existentes possuem código escrito). E aí é que está: o poeta não trabalha com o signo, o poeta trabalha o signo verbal.

 

            Como explicou o crítico paulista, o poeta trabalha o signo verbal e a presente asserção leva-nos a compreender que a poesia é um conjunto de signos verbais que formarão um signo de maior amplitude e complexidade formal-conteudística: o poema. Então, analisá-lo significa construirmos leituras semióticas sobre o mesmo. A contemporaneidade já possui registros de três linhas de pesquisas diferentes acerca dos estudos semióticos, optamos por aquela que foi a primeira a fornecer as primeiras orientações que vieram a solidificar como devemos depreender o signo em sua totalidade: a Semiótica teorizada por Charles Sanders Peirce. Este teórico norte-americano estruturou o entendimento do signo numa relação triádica, em que o primeiro seria o representamen (ou signo), o segundo o objeto e o terceiro o interpretante:

 

Um Signo, ou Representâmen, é um Primeiro que se coloca numa relação triádica genuína tal com um Segundo, denominado seu Objeto, que é capaz de determinar um Terceiro, denominado Interpretante, que assuma a mesma relação triádica com seu Objeto na qual ele próprio está em relação com o mesmo Objeto. A relação triádica é genuína, isto é, seus três membros estão por ela ligados de um modo tal que não consiste em nenhum complexo de relações diádicas.

 

 

            O representamen seria o ser visivelmente perceptível, ou seja, aquilo que serve para representar algo, já o objeto é o designador daquilo que o representamen se refere. Em seguida, quando fazemos esse inter-relacionamento do signo com seu objeto, obtemos mentalmente outro signo que Peirce nomeou de interpretante. Pensemos no vocábulo escrito guarda-roupa, que é o representamen, e associemo-lo ao seu objeto propriamente dito, logo após, pois se trata de um mecanismo que ocorre de maneira interligada, surgirá o interpretante do objeto fornecido como uma tradução do signo criado, sugerindo assim seu sentido. Através desses correlatos, Peirce erigiu seus estudos sobre o signo baseando-se em três tricotomias. A primeira diz respeito à relação do signo com ele mesmo, a segunda deste com seu objeto e a terceira deste com seu interpretante. Nosso presente estudo versará sobre a segunda pelo fato de seu criador ter asseverado que se trata da mais importante: “a mais importante divisão dos signos faz-se em Ícones, Índices e Símbolos”. Sobre o primeiro, Peirce afirma que:

 

um signo pode ser icônico, isto é, pode representar seu objeto principalmente através de sua similaridade, não importa qual seja seu modo de ser. Se o que se quer é um substantivo, um representamen icônico pode ser denominado de hipoícone. Qualquer imagem material, como uma pintura, é grandemente convencional em seu modo de representação, porém em si mesma, sem legenda ou rótulo, pode ser denominada hipoícone. Os hipoícones, grosso modo, podem ser divididos em de acordo com o modo de Primeiridade de que participem. Os que participam das qualidades simples, ou Primeira Primeiridade, são imagens; os que representam as relações, principalmente as diádicas, ou as que são assim consideradas, das partes de uma coisa através de relações análogas em suas próprias partes, são diagramas; os que representam o caráter representativo de um representâmen através da representação de um paralelismo com alguma outra coisa, são metáforas.

 

            Esses conceitos serão exemplificados na análise dos poemas selecionados. A princípio, é importante que saibamos que o ícone se fundamenta num processo de similaridade, de aproximações e comparações. Quanto ao segundo tipo, “um Índice ou Sema [...] é um Representâmen cujo caráter Representativo consiste em ser um segundo individual” e “todo individual é um Índice degenerado de seus próprios caracteres”. Entendemos por índices degenerados aqueles que se posicionam em estado de referência, portanto, se são degenerados, eles restringem-se a condição de subíndices:

 

Subíndices ou Hipossemas são signos que se tornam tais principalmente através da conexão real com seus objetos. Assim, um substantivo próprio, um demonstrativo pessoal, um pronome relativo ou a letra que se aplica a um diagrama, denota o que denota em virtude de uma conexão real com seu objeto, mas nenhum desses elementos é um Índice, dado que não são individuais.

 

            Basicamente, os índices funcionam como indicadores, ou seja, sinalizadores do seu objeto. No que tange ao universo literário, observamos que serão os subíndices as categorias mais apontadas na arte verbal. No que se refere à última modalidade sígnica da segunda tricotomia peirceana, temos: “um Símbolo é um Representâmen cujo caráter representativo consiste exatamente em ser uma regra que determinará seu Interpretante. Todas as palavras, frases, livros e outros signos convencionais são Símbolos”. Para Peirce “um símbolo genuíno é um símbolo que tem um significado geral”. Essa genuinidade é depreendida da seguinte forma:

 

Qualquer palavra comum, como “dar”, “pássaro”, “casamento”, é exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa concretizar a idéia ligada à palavra: em si mesmo, não identifica essas coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza, diante de nossos olhos, uma doação ou um casamento, mas supõe que somos capazes de imaginar essas coisas, e a elas associar a palavra. [...]

Os símbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos, especialmente dos ícones, ou de signos, misturados que compartilham da natureza dos ícones e símbolos. Só pensamos com signos. Estes signos mentais são de natureza mista; denominam-se conceitos suas partes-símbolo. Se alguém cria um novo símbolo, ele o faz por meio de pensamentos que envolvem conceitos. Assim, é apenas a partir de outros símbolos que um novo símbolo pode surgir. [...]. Um símbolo, uma vez existindo, espalha-se entre as pessoas. No uso e na prática, seu significado cresce. Palavras como força, lei, riqueza, casamento veiculam-nos significados bem distintos dos veiculados para nossos antepassados bárbaros. O símbolo pode, como a esfinge de Emerson, dizer ao homem: De teu olho sou um olhar.

 

 

            Se os símbolos são constituídos por pensamentos que envolvem conceitos, então a simbolicidade está bastante ligada a signos conceptuais. Como o próprio Peirce nos fala, os símbolos crescem e espalham-se. Podemos asseverar, a partir disso, que os artistas da palavra, em nosso caso os poetas, são grandes responsáveis pelo desenvolvimento desse avanço. Conforme afirmou Décio Pignatari, eles trabalham o signo verbal, ressignificando-o, buscando novos sentidos. Assim, a poesia contemporânea vai registrando seu espaço em nossas Letras Literárias.

            O livro PER VER SOS (2003), de Antonio Miranda, abrange grande dinamicidade sígnica pelo fato de o autor explorar o sentido das palavras, as formas e principalmente fazer uso de gêneros textuais consagrados em nossa contemporaneidade: o esperpentismo poético e a antipoesia. Ambos aproximam-se por vários aspectos. São oriundos de literatos hispânicos, unem-se por contestarem e contradizerem. São categorias bastante apropriadas para um poeta que possui intensa afinidade por caminhar na contramão. Selecionamos dois poemas da referida obra a fim de apresentarmos como o autor trabalha o signo verbal na intenção de erigir a poesia. Os poemas são PER VER SOS XIX e REV VE SOS I. O primeiro trata-se do décimo nono antipoema de uma sequência de vinte e cinco textos de mesmo título. O segundo é um antipoema que corresponde ao nono texto de uma sequência de dezenove produções com o mesmo título, porém todos são separados com uma letra do alfabeto obedecendo à ordem sistemática das letras, então eles separam-se indo das letras A a S. Este é o de letra I. É importante que se esclareça que essa ocorrência não condiz ao algarismo romano de número um.

Nossas leituras sobre esses textos versarão não apenas sob o viés semiótico em si, mas precisamente sob um olhar intersemiótico, porque “toda poesia, aliás, é intersígnica”, isto é, num texto poético não se pode observar apenas o código escrito, mas os efeitos sonoros das paronomásias aliterativas, das estruturas rítmicas, das paronomásias materializadas nas rimas, enfim, na fusão das percepções sensoriais, uma vez que o efeito visual, o olfativo, o palativo, o tátil e o sonoro correspondem-se. São esses vieses que fazem despontar uma leitura intersemiótica.

Antes de adentramos nas produções de Antonio Miranda, faz-se mister aprofundarmos mais sobre os gêneros abordados por ele. O esperpentismo é um gênero que se plasma na antipoesia. Uma de suas maiores características é o fato de ele ser oximórico. É dessa forma que Antonio Miranda concebe a si e à sua escrita em PER VER SOS (2003): “o saudoso poeta Waly Salomão, no nosso primeiro contato, dando-me um “abraço inaugural”, escreveu que sou um “caótico neoconcreto”. Isto é: um oxímoro. [...]. É assim mesmo que eu me vejo ao completar 50 anos de poesia, [...] sou mesmo um oxímoro”. Assim se apresenta o gênero esperpêntico. Zamora-Vicente sobre o Esperpentismo asseverou: “Desconcertante, esquinado, gesticulante de voces y situaciones, ese nuevo vendaval artístico ha suscitado curiosidades”, por isso, “nos reconocíamos confusamente, simpatizábamos con lo que en el esperpento ocurría. Despertaba en nuestro pasmo un agridulce regusto familiar, de cercanía sugestiva y repelente a la vez”.

O comentário do crítico aproxima-se assaz da condição paradoxal esperpêntica. O contexto em que o ser humano contemporâneo se encontra é deveras desconcertante, conflitante, oximórico. Daí a tendência à aproximação pelo fato de existir uma relação entre ambos e ao mesmo a iniciativa de repeli-lo é condizente com a complexidade das contradições. Antonio Miranda esperpentiza as situações do cotidiano em seus versos perversos. Sobre isso, Elga Pérez-Laborde afirma:

 

O poeta admite-se como um oxímoro, e como tal, mantém viva sua constante irreverência jogando com as contradições. A mesma irreverência dos inícios, a de sua adolescência, a de Tu país está feliz, que fez vibrar os jovens das décadas da rebeldia. Conserva viva a mesma chama dos poetas iracundos, o mesmo humor negro, o sarcasmo que parece ser a maneira que tem de seguir enfrentando o mundo e a vida com uma postura de maldito que joga com as formas, as figuras e as palavras. Esperpentiza a arquitetura textual dos modernistas com poemas grávidos para a esquerda e para a direita, contraditórios na estrutura e no conteúdo, num versilibrismo de linguagem maior e menor, às vezes chocante, às vezes conciliador, barroco, [...]. Como um oxímoro que é, Antônio Miranda apresenta-nos o desafio de seguir lendo cada verso “perverso”, apesar de qualquer resistência.

 

            Dessa maneira, o poeta vai construindo seu perfil esperpêntico neste livro e em suas demais obras. Esse estilo, na poética de Miranda, alcança uma expressividade maior através da Antipoesia. Trata-se de um gênero transgressor que se distingue do consagrado padrão de Poesia, daí ser nomeado com o prefixo designador de oposição. “La antipoesía distorsiona la forma interior de gêneros históricamente bien definidos, destruyendo su encanto y belleza mediante la presencia degradada de lo real, un temple agresivo y neurótico y un yo desrealizado, múltiple y contradictorio”. Para Iván Carrasco, “en síntesis, la antipoesía es una modificación que ocurre en el sistema idealmente configurado de la poesía contemporánea, que quiere aproximar la poesía a la vida, para lo cual establece una aproximación máxima del lenguaje poético a la lengua hablada”. Por isso que dentre as características mais presentes desse gênero, destacam-se “el lenguaje coloquial, la oralidad, la narratividad, la parodia, el prosaísmo, la despersonalización del hablante, la ironía, el humor negro, los recursos de la publicidad, los graffiti, el objet trouvé, el collage, la referencia a lo cotidiano, el hablar popular”. São marcas visíveis nos antipoemas de PER VER SOS (2003) as quais visamos a explorá-las na leitura dos textos já referenciados. Portanto, encetemos a análise do primeiro:

 

PER VER SOS  XIX

 

                                         Meninos, eu vi.

 

                                  Vi o Santo Papa que era bom de papo

                              vi a moça do circo que engolia facas

                           a cadeira sem pernas, o chupa-cabra

                       a chuva na roseira, saideira

 

              vi a galinha preta no despacho

          farofa e maionese.

 

  Eu vi o Brasil na TV e era lindo

altaneiro e sobranceiro.

Quem duvida?

 

Vi o Vinicius de Moraes jurando amor eterno

enquanto durasse

a Chica da Silva, o Tirandentes esquartejado

o Tom Jobim tocando piano na Mangueira

vi tanta besteira

  e o Jânio dependurando a chuteira

      ou era tênis, chinelo, sei lá

          o Romário fazendo gol

 

 

                 enquanto estamos sujeitos ao deus-dará.

 

                         Saravá.

 

            O texto como um todo se assemelha a um diagrama pela disposição dos versos nas sete estrofes, as quais não possuem uma regularidade entre si. Elas iniciam e finalizam por um monóstico e as estrofes centrais dividem-se entre quadra, dístico, terceto e oitava, mas curiosamente o antipoeta principia e conclui esse texto literário por um monóstico. Isso dá um efeito de síntese à mensagem como um todo. Ela é introduzida generalizando um interlocutor e apresentando sua ideia: a da existência do que se testemunha na contemporaneidade. Ao final, deduz-se que tudo o que tem se mostrado não passa de uma grande besteira que vem a ignorar a verdadeira condição da coletividade que se encontra ao deus-dará. O antipoeta brinca, satiriza, ironiza para poder conscientizar e também para mostrar se eu inconformado diante do que vê.

O primeiro verso, ou melhor a primeira estrofe, é uma interdiscursividade com a canção Meninos, eu vi, de Chico Buarque. O antipoeta recupera esse título a fim de já iniciar sua construção antipoética ironizando as situações do cotidiano brasileiro. A anáfora do verbo “vi”, no decorrer do texto, realça a intenção de o autor mostrar o que se dá importância na realidade na qual se vive. O antipoeta brinca com as palavras, ou melhor, ele explora a simbolicidade dos substantivos para desencadear o humor e, mormente, ilustrar, isto é, pintar um quadro do que é a vida brasileira. Logo no primeiro verso da segunda estrofe, há uma ridicularização de uma representatividade consagrada no panorama internacional. Por convenção de nosso corriqueiro prosaísmo, a expressão “bom de papo” é atribuída a pessoas que impressionam por sua oratória, mas geralmente são palavras vãs, jogadas ao vento que não correspondem às ações do falante que as enuncia.

A paronomásia materializada nos termos Papa e papo além de sugerir o deboche, fornece a ludicidade através da iconicidade imagética da aliteração do fonema bilabial /p/. É importante também salientarmos que na mesma proporção que o Papa é visto a galinha preta do despacho também. O antipoeta explora através da implícita antítese das crenças, como o catolicismo na pessoa do Santo Papa e a macumba da “galinha preta do despacho”, a ausência de fé. Apresenta-se um eu cético que não se prende às verdades das religiões, mostra-se um eu que desmistifica aquilo em que o outro acredita. A mensagem é deveras crítica. É esperpenticamente desconcertante e debochada. O eu não se prende àquilo que se tem como assaz forte na vida de um ser humano: sua crença.

A ironia atinge seu ápice na quarta estrofe ao se mencionar que o Brasil é visto lindo, altaneiro e sobranceiro. Porém, logo após a gradação dos adjetivos que se aproximam pela similar carga semântica, o antipoeta indaga a um interlocutor coletivo “Quem duvida?”. O verso é muito hilariante, pois é uma pergunta indutora de uma resposta, pois se ela fosse respondida por essa suposta coletividade, bastantes replicariam assertivamente através da dúvida. O eu explora a indexicalidade através dos substantivos próprios como Santo Papa, Brasil, Vinicius de Morais, Chica da Silva, Tiradentes, Tom Jobim, Jânio, Mangueira, Romário a fim de destacar a importância que é dada a celebridades em oposição à indiferença fornecida àqueles que caíram no anonimato. Expressa-se nitidamente essa crítica através da penúltima estrofe “enquanto estamos sujeitos ao deus-dará”. Agora, para banalizar esperpenticamente esse contexto o eu antipoético faz um apelo através da simbolicidade do vocábulo “Saravá”. O texto como um todo faz jus ao título PER VER SOS, haja vista que se satiriza perversamente a realidade na qual se vive. Passemos agora à leitura do segundo poema.

 

REV  VE  SOS

I

Tuas roupas no meu

guarda-roupa têm mais

intimidade do que os

nossos corpos na cama.

 

Uma certa fricção ou

fruição macia e fria

de corpos prostrados

um roce, uma prega

do tira e põe do cabide.

 

               Lado a lado são vestes

                    nuas, tuas, cruas

                           com vestígios de

                                felicidade.

 

                                    Talvez por contágio

                                       proximidade

                                           sofreguidão, ressábio

                                            presságio e ausência.

 

                                              Roupas despidas de ti

                                              vazias, contidas

                                              guardando as formas

                                             de tua liberdade.

 

                                            Um certo fetichismo

                                           de abandono

                                          resquícios de suor

                                   e perfume, dobras

                               quem sabe manchas.

 

Visito tuas roupas

           com as narinas

                  com os dedos

                     solitários.

 

                              Superfícies aveludadas

                                amarfanhadas, repassadas

                                 revisitadas

                                  – meias e ceroulas

                                   misturadas com sutiãs

                                  e gravatas na gaveta

                                  alicates, dedais

                                 preservativos

                                em estado de inação

                               e promiscuidade.

 

                            Uma carência de botões

                       bolsos, beiradas

                    desejos encardidos

                 preteridos

             postergados.

 

            A memória seletiva é o recurso do eu enunciador assaz saliente nesses versos. Acreditamos também que o fato de eles aproximarem-se e distanciarem-se da convencional margem esquerda sugerem o ir e o vir das reminiscências. O eu poético procura captar todos os sinais que venham a indicar a presença do outro que para o momento das lembranças encontra-se ausente. Isso é justamente o que caracteriza a memória. Segundo Platão, ela é a “representação presente de uma coisa ausente”.

O texto dispõe os versos de forma criativa com curvas insinuantes, o que aproxima a forma do conteúdo, uma vez que o poema explora objetos constituídos de curvas como os símbolos: meias, ceroulas, sutiãs, preservativos, botões, bolsos, alicates, dedais. Objetos pertencentes a um tu ausente cheio de angulações circulares. Poderíamos dizer que se materializou o isomorfismo pelo fato de forma e conteúdo interligarem-se. Seria como o próprio Antonio Miranda proferira no prefácio deste seu livro: “a forma como conteúdo, na experimentação; a palavra como construção, na busca de novos sentidos”. Além disso, Elga Pérez-Laborde expusera que esse estilo formal condiz com uma postura esperpêntica. Um texto grávido de símbolos. A memória é preenchida com a menção à simbolicidade das roupas. 

A antítese materializada na ausência do carnal ante a presença do sensorial é assaz forte. A ausência de intimidade gera uma fricção dos sentimentos do eu enunciador. A iconicidade imagética da aliteração do encontro consonantal /fr/ é por demais sugestiva. Os termos “fricção”, “fruição” e “fria” são formados pelo fonema fricativo labiodental /f/ mais o fonema vibrante uvular /r/ que juntos sugerem esse tremor dos sentimentos do eu enunciador. Além disso, a presença do fonema vocálico /i/ em cada uma dessas palavras serve para fechar, ou poderíamos dizer, reter mais esse sentimento a fim de que ele não se desvaneça, esteja contido na significância da fusão do pensar e do sentir. A sensibilidade da sensorialidade tátil é fortemente despertada. Para o eu enunciador, a indumentária macia e fria sugere a imagem dos corpos nus prostrados lado a lado.

A paronomásia das rimas internas do verso “nuas, tuas, cruas” também é sugestiva, pois a assonância vocálica do fonema /u/ indica fechamento e a do /a/ abertura, isto é, o sentimento fechado na memória liberta-se através do contato com as vestes abrangendo assim “vestígios de felicidade”, como o próprio eu enunciador sugere através dessa iconicidade imagética. A felicidade proporcionada pelo contágio, pela proximidade, pela sofreguidão de possuir essas vestes. A voz poética ratifica que as roupas despidas e vazias guardam as formas da liberdade do tu ausente. Gera-se certo fetichismo ante esse abandono, essa ausência de complementaridade.

O sentimento de preenchimento ganha proporções cada vez maiores, pois a sexta estrofe sugere uma inquirição da memória através da sensorialidade visual e olfativa ao fundir os resquícios de suor e perfume com as dobras e as manchas das roupas. Na sétima estrofe ocorre uma explosão dessa sensorialidade, o eu enunciador visita as roupas com as narinas e os dedos solitários. A simbolicidade tátil e olfativa preenche essa ausência do tu. Há três figuras icônicas presentes nessa estrofe. Visitar as roupas com as narinas e com os dedos desenvolve a presença da sinestesia pelo fato de fundir olfato e tato. A ação desempenhada por parte deste eu através das narinas e dos dedos solitários sugere a figura da metonímia. Teríamos assim partes de um eu que vão se somando a fim de atingir uma completude emocional e, sobretudo, carnal. Essa estrofe desperta-nos para a iconicidade metafórica pelo fato de este eu sugerir-se como a própria sensorialidade. Ele é a fusão dos sentidos em busca de seu complemento que se encontra ausente. As leituras intersemióticas neste poema como um todo são muito sugestivas.

O desejo de intimidade aprofunda-se cada vez mais pelo fato de o eu enunciador expor que os signos simbólicos ceroulas, sutiãs, gravatas, alicates, preservativos harmonizam-se. Esperpenticamente, o eu antipoético sente-se desconcertante ao ponto de exteriorizar, através do oxímoro, que os preservativos estão em estado de inação e promiscuidade. Inércia e ação fundem-se na memória deste eu que registra sua intenção em concretizar seu desejo. A iconicidade imagética presente nos símbolos “Uma carência de botões, bolsos, beiradas” é sugestivíssima. O fonema bilabial /b/ é oclusivo vindo assim a sugerir a explosão desses sentimentos carentes. Mais uma vez, apela-se para imagem sinestésica através dos termos “desejos encardidos”. Sugere-se um verdadeiro não suportar dessa ausência. Por isso, que o antipoeta absorvendo a verdadeira postura da antipoesia exterioriza sua transgressão com a intenção de que esse sentimento seja postergado, ou seja, desobedecido, violado, infringido, em síntese, transgredido.

Enfim, é Antonio Miranda, através de PER VER SOS (2003) que é uma edição comemorativa pelos seus cinquenta anos de poesia, que nos presenteia com sua arte, sua poesia contemporânea que se mostra desconhecedora de limites ante a criação, a transmissão de ideias e, acima de tudo, ante a realização do que é poesia contemporânea. O poeta, que também é antipoeta, encaminha-nos a leituras sígnicas e intersígnicas pelos meandros de suas letras literárias.

 

 

REFERÊNCIAS

 

CARRASCO, Iván. Para leer a Nicanor Parra. Santiago: Ediciones Universidad NacionalAndrés Bello, 1999.

 

MIRANDA, Antonio. PER VER SOS. Brasília: Thesaurus, 2003.

 

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2012. (Série Estudos).

 

PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura (1974). 3. ed., São Paulo: Cultrix, 1987.

 

__________. O que é comunicação poética. 8. ed., Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

 

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2007.

 

ZAMORA VICENTE, Alonso. La realidad esperpéntica. Madrid: Editorial Gredos, 1969.

 

 

 

 

Valter Gomes Dias Junior é Graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e Doutorando em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail para contato: valtergdj@yahoo.com.br

Cf. Décio Pignatari, O que é comunicação poética, Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p. 10.

Idem, ibidem. O grifo é do autor.

Antônio Lisboa Carvalho de Miranda é maranhense, nascido em 05 de agosto de 1940, poeta, prosador, dramaturgo e escultor. É membro da Academia de Letras do Distrito Federal. É professor aposentado da Universidade de Brasília, com Doutorado em Ciência da Comunicação pela USP (1987), Mestrado em Biblioteconomia na Lougborough University of Technology – LUT – Inglaterra (1975). Sua formação em Bibliotecologia é da Universidad Central de Venezuela, UCV, Venezuela (1970).

Cf. Antonio Miranda. Um quase manifesto à maneira de um desabafo. In: __________. PER VER SOS, Brasília: Thesaurus, 2003, p. 10.

Cf. Décio Pignatari, Op. Cit., p. 10. Os grifos são do autor.

Cf. Charles Sanders Peirce, Semiótica, 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 63. (Série Estudos)

Cf. Charles Sanders Peirce, Op. Cit., p. 64. Os grifos são do autor.

Idem, ibidem. Os grifos são do autor.

Idem, p. 66. Os grifos são do autor.

Idem, p. 67.

Cf. Charles Sanders Peirce, Op. Cit., p. 67. Os grifos são do autor.

Idem, p. 71. O grifo é do autor.

Idem, ibidem. O grifo é do autor.

Idem, p. 73-4. Os grifos são do autor.

Cf. Décio Pignatari, Semiótica & Literatura (1974), 3. ed., São Paulo: Cultrix, 1987, p. 98.

Cf. Antonio Miranda. Um quase manifesto à maneira de um desabafo. In: __________. PER VER SOS, Brasília: Thesaurus, 2003, p. 12.

Cf. Alonso Zamora Vicente, La Realidad Esperpéntica, Madrid: Editorial Gredos, 1969, p. 7.

Idem, ibidem.

Cf. Elga Pérez-Laborde, Reflexões Paratextuais, In: Antonio Miranda, PER VER SOS, Brasília: Thesaurus, 2003, p. 91. O grifo é do autor.

Cf. Iván Carrasco. Para leer a Nicanor Parra. Santiago: Ediciones Universidad NacionalAndrés Bello, 1999, p. 30.

Cf. Iván Carrasco. Op. Cit., p. 30-1.

Idem, p. 29. Os grifos são do autor.

Cf. Antonio Miranda, PER VER SOS, Brasília: Thesaurus, 2003, p. 39. (A primeira edição é de 2003)

Cf. Antonio Miranda, Op. Cit., p. 64-5.

Cf. Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, Campinas: Ed. Unicamp, 2007, p. 27.

Cf. Antonio Miranda. Um quase manifesto à maneira de um desabafo. In: __________. Op. Cit., p. 10.


 

 

 
 
 
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